Texto do Brinquedo*

Os confins da infância parecem intransponíveis. De repente, recebo uma dica, uma palavra mágica, uma espécie de senha para entrar em uma máquina do tempo e desembarcar diretamente nos tempos em que cores, doces e brinquedos eram tudo o que havia. Recordo-me do meu primeiro brinquedo, ou o último a ser esquecido. Como ele parece vivo agora. Uma caminhonete, ou um jipe, não sei, sei que era azul escuro e que a cobertura traseira era branca. Provavelmente tenha sido este o meu primeiro brinquedo. Como eu gostava dele, as rodas do carrinho, que media mais ou menos um palmo e meio de comprimento, eram muito soltas e com um forte impulso ele ia longe.

Mas... ah, estou me lembrando, talvez o meu primeiro brinquedo seja ainda maior que o jipe. O enorme quintal no fundo de casa. Ah... dois pés de jabuticaba, um “pertencia” a mim o outro à minha prima-irmã mais velha. A gente subia neles, colhia a fruta diretamente do pé. O meu pé de jabuticaba era muito grande, fora do comum, ele dava jabuticaba da qualidade conhecida como “olho-de-boi”, não que as frutas tivessem o mesmo tamanho do olho do bicho, eram quase sempre maiores.


Quando o mato crescia no quintal eu pegava placas retangulares de madeira, grandes, e amassava o capim verde criando um labirinto e quando minha mãe mandava capinar e tirar todo o mato, que imensidão se tornava aquele espaço. Restava uma terra fofa. Com a enxada e o rastelo eu criava estradas desenhadas a mão, elas ligavam a parte com cimento (cidade) à área rural e, fazendo este caminho, lá estava ele, o jipe azul com branco que transportava miniaturas de vacas, porcos, cavalos e zeladores.

Conseguindo ir ainda mais além, lembro-me de muitas cores. É um joguinho de montar muito conhecido na década de 80, o Lego. É engraçado eu me lembrar das peças das cores, dos formatos, mas não me lembrar de nada que eu tenha conseguido montar com eles. Eu gostava mesmo era do baldinho amarelo. Ele servia para guardar as peças, era grande. Me serviu de tambor, de chapéu de mágico e de palco, eu sempre gostei dos palcos e vivia a imaginar-me neles falando, explicando, me exibindo, discursando. Não sei em que momento o balde amarelo se tornou um palco pequeno, mas, sei que descobri que o mesmo quintal das estradas feitas a mão podia se tornar um grande palco com cenário, onde as "pessoas" do auditório eram cada tijolinho do muro que me cercava.

Descobri que um amassador de alho da cozinha era muito parecido com um microfone e aí... meu programa de TV durava tardes inteiras. No quadro de aventuras o protagonista era novamente o pé de jabuticaba olho-de-boi, eu subia e subia até alcançar o telhado da casa que cada dia mais se tornava um palco mais interessante. É esse palco que me remete de volta aos meus 20 anos, ele parece ser o elo, a ponte que conecta a infância, a adolescência e esse novo período que não sei denominar. É muito boa a sensação de saber que se teve infância e, principalmente, que ela está lá no íntimo de minhas memórias disponível a ser recorrida para qualquer ajuda. Hoje, ela me ajudou a perceber que minha vida é um palco e que ele vai se aumentando cada vez mais.

*Texto produzido para a disciplina de Métodos de História de Vida.

A proposta do primeiro brinquedo é uma das formas de perder os bloqueios que por ventura adquirimos em escrever.
Este texto marca a volta do blog.

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