Aquele não ia ser um sábado comum.
No dia anterior, ele fez questão de assistir ao pôr do sol e sentir os últimos raios queimarem a face. Foi dormir muito cedo pra ver aquele mesmo sol retornar. Ainda antes da alvorada, testemunhou as últimas estrelas brilharem tímidas no firmamento. Refletiu sobre o quanto as pessoas subvalorizam o nascer do dia. Poucos se encorajam a testemunhar o momento em que os espectros de luz se misturam à eventual neblina e ao azul cada vez mais claro do céu. Refletiu de novo sobre o quanto as pessoas subvalorizam as coisas em geral. E sobre o quanto subvalorizam outras pessoas. E depois sobre o quanto subvalorizam a si mesmas.
Ouviu o silêncio das ruas. Percebeu como tudo parece rodar em câmera lenta. Aos poucos o cenário vai se transformando. Na árvore do vizinho, os pássaros já acordaram e começam a produzir sua orquestra. Na passarela que dá acesso ao terminal de passageiros, dá pra ver quando a funcionária solitária se encaminha ao posto de trabalho. Logo, os primeiros ônibus começam a desfilar sua estridência. Ele refletiu sobre como ônibus vazios podem fazer tanto barulho. Continuou refletindo até se perguntar se seres humanos vazios também são tão barulhentos. Sem concluir.
Não demora pra que a poesia do nascimento do dia seja interrompida pelos sons dos portões batendo um a um, do movimento dos carros e da vitamina D na pele. Imediatamente tudo é cidade, mas quase nada é urgente porque é sábado.
O dia que acabou de chegar vai crescer mais que o comum. Pela imposição dos humanos, terá uma hora a mais. Ele passou um período admirando as mutações urbanas. Lá pela décima segunda hora, se sentou à mesa. Menos que uma escumadeira de arroz, outra de feijão. Salada à vontade. Filé de frango. Laranja. Refletiu sobre bem-estar, sobre as escolhas postas no cardápio e na vida. Concluiu sempre se decidir pela leveza. No cardápio e na vida.
Durante a tarde se encontrou com recordações. Organizou tralhas, lembranças, pensamentos, desejos e sonhos. Colocou coisas no lugar. Se encontrou com o fim de um período. Nos últimos meses esteve fora de hora. O escurecer do cotidiano durava mais do que deveria durar, mas sempre clareava. Algumas etapas pareciam intermináveis, dias longos que mesmo assim, terminavam. Refletiu sobre o período mais natural que se aproxima quando tem sol onde tem que ter sol. E quando breu, as estrelas.
Foi à janela lateral cumprir um ritual. De lá dava pra ver o crepúsculo. O fim estava próximo e ele esperava ansioso como quem espera um ano novo. Céu alaranjado, raios permeando a paisagem de concreto, o sol vai penetrando a urbes na medida em que desaparece no horizonte.
![]() |
Por do sol na janela lateral | foto: Maria Eduarda Barroso |
Na parede do corredor, sem tomar conhecimento, um objeto observa tudo girar. Marca com precisão que 23 horas e 59 minutos já se foram. Ele reflete sobre a velocidade do tempo no exato momento em que o tempo para. E volta. E recomeça.
Ele caminha até a parede do corredor, se apóia em um pé só pra alcançar o objeto. Retira de lá. Altera as funções, gira o ponteiro, confere o ângulo, atrasa o relógio. Depois vai até a cozinha. Outro objeto daqueles está em cima da geladeira. Daí o mesmo procedimento. Em seguida volta o olhar ao punho esquerdo, se confunde em seus botões, demora até conseguir reconfigurar. Consegue. Se apressa até o quarto, acessa uma gaveta, abre uma caixa daquelas de guardados que mexera horas antes. Mais de uma dezena de marcadores do tempo já estão desatualizados. Mesmo os de pulseira enferrujada, ainda marcam. Cada um com sua configuração diferente. Ele se adianta para atrasá-los e quando dá por si, já se passaram cinquenta e sete minutos daquela hora a mais e ele só acertou relógios.
Refletiu sobre a diferença de um dia com 24 para um dia com 25 horas. E escreveu esse texto até chegar nova alvorada. É domingo.
josuá barroso é jornalista formado, possui anos de prática em produzir programas jornalísticos na TV. Há quase dez anos mantém este blog que sobrevive à inanição e inaugurou um novo site em fevereiro de 2018. Entre 17 e 18 de fevereiro, terminou o horário brasileiro de verão. E este texto é sobre os períodos criados pelos humanos que acabam nos servindo como marco regulatório de nossas histórias de vida.
Comentários