(Este artigo não pretende dar spoilers, mas alerto o leitor que poderá haver subjetividades ao longo do texto. Se você procura um incentivo para ver a série, a leitura pode inspirar. Se já assistiu, pode viajar um pouco revisitando os lugares que já passou, mas desta vez usando as minhas memórias. Fala sério, isso é muito BM, não é mesmo?!)
Eu tô rindo, mas é de nervoso. Só tenho uma palavra: bizarro.
Começo uma viagem que me leva para o futuro distante, ao mesmo tempo em que os cenários contemporizam com o passado e também ao mesmo tempo em que tudo é tão atual. De repente, estou em um mundo onde a classe trabalhadora sustenta o luxo de uma classe dominante e em troca recebe entretenimento abstrato. Não fosse o ambiente futurista, dava pra achar que o tempo era o presente. No fim dessa viagem, duas palavras: hipocrisia cíclica.
Não há tempo pra despedidas. Logo sou levado abruptamente para uma crise conjugal. Que período histórico seria esse? Grandes acontecimentos da humanidade foram traçados sob crises desse tipo, então eu poderia estar em qualquer ano. Mas já nos primeiros minutos dá pra perceber que estou em uma época onde as memórias são levadas muito a sério, em detalhes. Quando as horas passam, a crise ganha forma. Os recursos dessa super-memória são apresentados de forma mais clara e surpreendem. Ter uma memória infinita pode nos fazer enlouquecer. No fim, uma palavra: renúncia.
Enquanto sou levado a outra época, penso sobre coisas que são definitivas na vida - como o próprio fim da vida. Mas percebo que cheguei a um tempo que lida de maneira espantosa com o que era pra ser definitivo. E se toda carga que acumulamos, se todos os rastros digitais que deixamos, se tudo o que fazemos registrar fosse usado pra nos recriar? Quem iria querer fazer uso disso? É o tipo de coisa que eu não queria que existisse no meu verdadeiro tempo, mas que se existisse eu certamente usaria. No fim, uma palavra: dependência.
Num instante só já me vejo numa cidade de primeiro mundo como qualquer outra. Fica num bairro residencial com belas casas. Vejo as pessoas caminharem em grupos como quem se prepara pra assistir uma parada cívica. Todo mundo munido de câmeras, celulares que gravam. Não parece que viajei pra um tempo muito distante do meu. Mas logo as coisas surpreendem. Uma mulher corre desesperada pelas ruas. Ela pede socorro, ninguém parece se importar. A olho nu as tecnologias não me parecem distantes e isso me faz prever que a insensibilidade vai tomar conta do mundo muito logo. Sigo acompanhando as pessoas pelas ruas e... no fim, algumas palavras numa pergunta: você é a favor da pena de vida?
Volto a rir, ainda de nervoso. Viajei para uma época ainda mais próxima da minha. Nada me é estranho, mas o todo é espantoso. No fim, um novo conceito me ocorre em duas palavras: consciências descartáveis.
Em seguida, uma nova viagem. A primeira sensação é de muito frio. Olho ao redor e tudo o que vejo é nada. Há neve por todos os lados. Impossível supor em que tempo eu fui parar. Mas a preocupação com qual é a época não demora a cessar. Logo me interesso por uma conversa entre conhecidos, talvez colegas de trabalho nesse canto gélido do mundo. É pela conversa que dá pra perceber que muitos, muitos, muitos anos se passaram. Estou bem longe da minha contemporaneidade, mas ainda ouço relatos de escravidão. Que seja uma escravidão tecnológica, molecular, imaterial, mas ainda assim algo tão longevo está tão vívido. Dentro da viagem, faço outras viagens e, no fim, confusão sobre os diversos significados e conceitos de uma palavra: crueldade.
Faço uma nova viagem. Chego na cidade de carro com um motorista de aplicativo. Pra mim soa natural desembarcar e logo avaliar a experiência. Quatro estrelas. Mas logo percebo algo que não me soa natural nesse tempo. Avaliar experiências parece ter ganhado dimensões esdruxulamente gigantescas. Me deparo com sorrisos que não parecem ser sinceros. Ouço risadas forçadas, assuntos triviais e igualmente forçados. Logo descubro que as avaliações de experiências podem nos definir e por consequência, nos limitar. No fim da viagem, descubro que sobrarão poucos lugares pra se exercer a sinceridade no futuro. E só uma palavra me vem à cabeça: aparências.
Novo destino. Me chamam pra jogar, mas passo. Fico observando de fora como as emoções vão se tornar cada vez mais dependentes de algo que parta da artificialidade. Enquanto uma relação real, se deteriora. No fim, quatro palavras: valorize quem ama você.
A nova parada vem em ato contínuo. Tudo se parece muito com minha época de origem, o que me assusta desde já. Começo a explorar caminhos, lugares e pessoas e o espanto aumenta na medida em que concluo que os acontecimentos só podem mesmo estar se desenrolando exatamente na minha época de origem. Uma época onde a má intenção te invade, te desmoraliza, te agride e você nem percebe. No fim, uma só palavra: escolhas.
Volto à máquina do tempo. Dessa vez a viagem parece mais distante. Assim que cheguei, fui orientado a viajar de novo, sem sair dali. Eu que já estou numa jornada de repente sou apresentado a um mundo onde jornadas incrivelmente reais são simuladas, por mais paradoxal que isso possa ser. É um tempo que serve como ponto de partida pra qualquer outro tempo sem sair do cais, e do nosso caos particular. É como dormir e sonhar, sentindo. No fim, viajei dentro da viagem e só consegui formar uma frase com seis palavras: não me tire nunca mais daqui.
Apesar dos meus pedidos, fui levado a um novo destino. Um tempo onde pessoas recebem a missão de proteger a humanidade. Parece bonito falando assim quando você está em segurança a ponto de nem saber do que está sendo protegido. Poderia ser qualquer época. Poderia ser na minha época, não fossem os recursos facilmente percebidos. Não fossem também os recursos dificilmente percebidos. No fim, me resta um conceito bem antigo que se resumo em três palavras: mito da caverna.
Agora estou nitidamente viajando de volta, pra mais próximo da minha época de origem. Fico logo sabendo que esse é um tempo de fortes manifestações e preparo pra me deparar com ruas tomadas de gente, muito barulho com palavras de ordem, faixas e cartazes expostos e gritaria. Quando chego, porém, não é nada disso que encontro. Percebo que a revolta está contida nos meios digitais. A tecnologia possibilita que todos sejam ouvidos e parece ter desconfigurado o sistema onde um juiz concursado representa a sociedade ao aplicar eventual punição. A sociedade está insaciável e o tempo é curto pra decidir se os erros de cada um são grandes o suficiente para uma pena capital silenciosa onde não há a figura conhecida e individual de um algoz. No fim, porém, só resta uma palavra e uma só lei: retorno.
No futuro distante, parece que viagens como a minha se tornarão cada vez mais comuns. Chego em um tempo onde mais uma vez essa é a atração. Mais uma vez sou transportado sem sair do lugar. Logo percebo a preocupação do usuário desse tipo de imersão nesses tempos distantes: de que adianta imergir e não encontrar no mundo paralelo pessoas que já conhecemos? E é aí que mora o perigo e onde nascem os problemas que parecem ser impossíveis de serem superados não fosse, no fim, só duas palavras: inquietude e inconformismo.
Minha próxima parada é num tempo onde as preocupações de mãe são levados à potência máxima. Descubro o que uma mãe faria se pudesse ir além de pedir pra filha colocar aquele casaquinho pra não passar frio. Se pudesse ir além de pedir pra filha não chegar muito tarde. Se pudesse ir além de decretar proibidas algumas amizades. Ultrapassando todas essas barreiras, no fim, está a causa e o efeito numa só palavra: incompreensão.
Não demoro a chegar no meu novo destino. Já carrego comigo muitas lembranças dessa jornada pelos tempos vindouros. São vivências que só pertencem a mim, a não ser que eu decida distribuir. Mas ao chegar nesse novo tempo, me deparo com uma sociedade que tem recursos para que as memórias íntimas sejam acessadas, mesmo sem que o dono das memórias decida compartilhar. Sem que o dono das memórias controle o que será objeto do acesso. Um tempo onde absolutamente todos os seres vivos possuem memórias, o que só me faz lembrar de uma palavra: surpresa.
O que seriam das muitas viagens da vida não fossem as paixões que permeiam a estrada? Na nova estação encontro uma geração obcecada pelo amor perfeito, mas que nem sempre sabe lidar com o fato de que um pretenso amor perfeito pode não ser a escolha do sistema, que não é perfeito e possui 99,8% de precisão. Sabe, no fim eu consegui apenas pensar que a perfeição só existe se uma determinada palavra for intensamente vivida: experiência.
Fui levado a uma nova época. Não identifiquei se mais adiante ou mais atrasada em relação a última. Talvez muito antes quando não havia nada, ou muito depois a ponto de ser o fim de tudo o que havia. Mas precisei fugir e enquanto corria, nesse fim, consegui uma palavra: desespero.
Ainda ofegante pela experiência da mais recente viagem, parei pra observar uma moça visitando um acervo. Fiquei do lado de fora e só sei que ela demorou bastante tempo lá dentro. Ela demorou tanto que cheguei a desistir de esperar ela sair e não tenho nenhuma palavra pra colocar aqui sobre essa minha última viagem. Aliás, até tenho duas: Black Mirror.
josuá barroso é jornalista formado, possui anos de prática em produzir programas jornalísticos na TV. Há quase dez anos mantém este blog que sobreviveu à inanição várias vezes. Inaugurou uma nova etapa por aqui em fevereiro de 2018, mesmo período em que descobriu tardiamente a série mais incrível, e profunda, e intensa, e exemplar, e real, e surreal, e premonitória, e impossível... já produzida. Este artigo viaja parágrafo-a-parágrafo pelos capítulos da série disponível na Netflix.
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