Ombudsman por um dia: a estreia do MyNews no YouTube

Lá vou eu me meter a analisar uma produção que acaba de estrear. Eu já disse aqui que isso não se faz, mas nesse caso essa crítica tem a pretensão de acompanhar a história. De alguma maneira foi isso o que aconteceu hoje no jornalismo brasileiro. Um grupo de profissionais muito competentes se reuniu - muitos deles após deixarem uma das maiores emissoras de TV do mundo - pra fundar um canal de jornalismo no YouTube. E isso é histórico.

Se já na TV esses profissionais estavam expostos a "ombudsmans extra-oficiais" de todos os tipos e o tempo todo graças à proximidade que as redes sociais impõem, imagine agora que estão todos morando na mesma casa onde essas múltiplas opiniões são emitidas sem limite e sem que ninguém as tenha solicitado. Vou eu então me atrever a atuar hoje como ombudsman da estreia do Segunda Chamada, primeiro programa jornalístico no MyNews.

O que mais me chamou a atenção nesse dia de estreia aconteceu horas antes do primeiro programa ir ao ar. No stories do MyNews, em meio a reproduções de capas de jornal impresso - que representam o que há de mais tradicional no jornalismo atualmente - um post me causou espanto. A foto de uma ilha de edição em plena atividade com a legenda "#SegundaChamada / Editando". O programa não seria ao vivo o que imediatamente me provocou uma porção de questionamentos e um deles resume os demais: o que um canal de jornalismo no YouTube pode oferecer de diferente da TV?

Atrair espectadores para assistir passivamente um "bate papo", mesmo sendo entre pessoas qualificadas e interessantes, é o que a TV faz há anos. E mesmo a TV, como veículo tradicional de mídia, tem se esforçado sobremaneira pra tentar inserir o tal espectador na conversa e o pré-requisito essencial para isso é a transmissão ao vivo. O programa Fatos e Versões da Globo News se assemelha muito ao formato do Segunda Chamada, e mesmo nele que vai ao ar gravado em boa parte de suas edições há um visível esforço de envolver o público na conversa por meio de mensagens ou perguntas recebidas em redes sociais. Era esperado que um programa nativo da rede, com kbps à flor da pele, conseguisse ir além nessa capacidade de dialogar e inserir os pontos de vista de quem já se acostumou a falar para muitos enquanto assiste, seja no twitter ou qualquer outro meio digital.

Perfil oficial do MyNews no instagram reproduz capas de jornal impresso no stories

Às 20h30 o MyNews disponibilizou então esse material gravado. São 47 minutos e 20 segundos em que o "amigo internauta" é desafiado a não se distrair com a janela minimizada ao lado ou com alguma notificação qualquer no smartphone. Com a vantagem, é claro, de poder retroceder e avançar a reprodução do vídeo quando quiser. Ao menos isso está garantido.

Logo na primeira intervenção, Antonio Tabet - um verdadeiro empreendedor da internet - parece querer tratar de responder a minha pergunta síntese: "o que um canal de jornalismo no YouTube pode oferecer de diferente da TV?" Tabet desafia os colegas acostumados às rédeas de uma TV aberta a soltarem um palavrão no ar. A retórica é óbvia: ele quer demonstrar que o canal dispõe de liberdades que veículos tradicionais não podem oferecer. E essa é uma das boas respostas que a minha pergunta síntese poderia ter. Depois dessa provocação, o humorista é interpelado por Mara Luquet: "você vai deixar eu falar aqui?", talvez fosse a mesma pergunta que muitos inscritos do canal também se faziam.

Ao introduzir a escalada com os destaques da edição gravada e o primeiro tema do Segunda Chamada de estreia, os assuntos me fizeram lembrar do antigo programa de Silvia Popovic na Band na década de 1990 onde temas acerca do comportamento humano eram debatidos. Bem no dia em que o ministro Luís Roberto Barroso autorizou a quebra dos sigilos telefônicos de duas pessoas ligadas ao presidente Michel Temer, o Segunda Chamada abriu com uma discussão sobre o "ódio do bem". Evidentemente que é factual o fenômeno de gente que usa o ódio pra combater o ódio. Mas, acreditem, a conversa logo descambou para um rumo surreal e, pior, unilateral.

Depois que Cristina Serra defendeu a legitimidade do ódio de Ulysses Guimarães contra a ditadura, a jornalista que é uma das mais brilhantes da atualidade, passou a condenar as ações de protesto de muitos cidadãos contra políticos corruptos. A ponto de mencionar o incômodo de Wesley Batista ao ser hostilizado numa churrascaria. Ela diz: "Seja qual for o vilão, a gente tem que manter um patamar mínimo de civilidade". O ponto central do debate é que essas atitudes de "ódio do bem" impedem um diálogo franco e produtivo, mas como dialogar com alguém que, segundo a Procuradoria-Geral da República, mesmo após assumir diversos crimes em delação premiada - e justamente por isso - utilizou dessas informações para ganhar 238 milhões de reais num jogo de mercado? Até Eduardo Cunha qualificado como "figura nefasta" pela jornalista mereceu piedade pela sapatada que levou no aeroporto.

Não parou por aí.

É hora de recorrer ao teaser do lançamento do canal que a certa altura promete "vários pontos de vista". Foi exatamente o contrário do que aconteceu na estreia. Na sequência os demais participantes do programa se revezaram pra reforçar a mesma opinião. A cada um que falava era mais do mesmo ponto de vista. Foi citada até uma suposta falta de respeito a Guido Mantega quando ele estava no hospital com a esposa (só faltou clareza em contextualizar na opinião se o desrespeito se deu quando o político foi hostilizado ou se quando foi detido no hospital particular).

Captura de tela de um teaser do canal MyNews no YouTube

Vale a discussão sobre atitudes de constrangimento e hostilidade a políticos denunciados ou envolvidos em escândalos. Vale a discussão e a preocupação em relação a agressões a cidadãos só pela opinião ou posição ideológica que assumem. Não vale o conservadorismo, ou a análise só pelo lado de quem pensa igual. Relembro aqui uma declaração de um veterano da mídia tradicional que nem precisa ter canal no YouTube pra poder falar palavrão ou se manifestar livremente. Em 2012, Ricardo Boechat deu uma entrevista em que afirmou: "Eu sou favorável a arranhar carro de autoridade, eu sou favorável a jogar ovo, eu sou favorável à revolta, a quebra-quebra", e o jornalista completa dizendo que "Vandalismo é botar as pessoas quatro horas na fila das barcas todo dia. Vandalismo é mandar segurança 'baixar porrada' em passageiro da Central do Brasil. Vandalismo é 'tu roubar feito um condenado' o dinheiro público".

A função de um canal de comunicação não é estabelecer quem está certo num debate como esses, mas para garantir a pluralidade que o MyNews promete, era preciso pelo menos uma opinião como a do jornalista Ricardo Boechat na roda. Uma opinião contraditória certamente não poderia vir, por exemplo, do também jornalista e político Gabriel Azevedo que é vereador em Belo Horizonte e faz parte da equipe fixa do canal. Como se não bastasse, ele completa a unilateralidade comparando ao "Pateta" o cidadão cansado de ser roubado que decide vaiar ou lançar um tomate podre num corrupto confesso como é o caso de Wesley Batista, que é dono do maior frigorífico do país e não pode nem frequentar uma churrascaria, ora vejam só.

Ter um político no elenco pode ser encarado de pelo menos duas maneiras: ou é um esforço de ter alguém "do lado de lá" dando a versão de quem vive um mandato eletivo - e nada melhor que um jornalista de formação para reportar essa experiência; ou é uma perigosa escolha onde um alvo natural do jornalismo assume o dardo e o transforma em peça de propaganda. A certa altura vimos o político do PHS elencar os benefícios absurdos que vereadores de Belo Horizonte têm direito. Ele relata o benefício e depois propaga que não faz uso. "Cada vereador tem dois carros com motorista. Pra deixar claro, não uso. Auxílio-gabinete, não uso. Verba-paletó, não uso. Celular, não uso. Seis mil reais de 'correio' pra enviar cartinha todo mês, não uso", declara ele.

Fora do timming
O programa seguiu e ao tratar dos pré-candidatos à presidência da República o MyNews acabou penando pela opção de não ser transmitido ao vivo. Possivelmente enquanto o programa era gravado, o prefeito de São Paulo, João Dória confirmava oficialmente ser pré-candidato ao governo do estado. Se fosse ao vivo, Tabet não teria incluído uma pergunta sobre o tucano na lista de presidenciáveis. Ele chegou a ser informado pelos colegas sobre o verdadeiro anseio do prefeito, mas naquele instante da gravação a informação ainda não era oficial. Se já fosse, poderia ser até debatida.

Ao traçar um paralelo entre eleições e recuperação da economia, Mara Luquet, fera no assunto, deu uma prévia de uma entrevista que gravou com o presidente do Banco Central na semana passada e que vai ao ar na próxima quinta. Parece mesmo que a TV coube dentro do YouTube e não quis nem trocar de roupa. Nas palavras do pesquisador francês François Jost em "Seis lições sobre televisão", a preferência pela transmissão ao vivo revelaria a obstinação da televisão em obter legitimidade através da relação que mantém com a realidade. Poderia ser exatamente essa a própria definição de jornalismo.

É certo que há previsão de programação ao vivo no MyNews, eu apostaria nisso. Mas reforço apenas que o canal vai sempre carregar a expectativa daquela minha pergunta síntese lá atrás. Em que um canal de jornalismo no YouTube, feito por gente reconhecida por seus trabalhos na TV, pode ser diferente da TV?

Tão certo também é que algumas discussões podem render sejam gravadas ou ao vivo. É o caso do debate sobre atletas trans que também esteve no espelho de estreia do Segunda Chamada. A atipicidade do tema garantiu aos participantes uma reflexão profunda, inquietante e inacabada, como devem ser as boas discussões.

Por fim, Antonio Tabet explica mais dos objetivos do canal como empreendimento. Ele acerta ao afirmar a necessidade de conteúdo num universo dominado pela "banheira de nutella" e por outras amenidades com milhões de acessos. Por isso abri esse artigo tratando do momento histórico que podemos observar a partir daqui no jeito de fazer jornalismo. Em entrevista ao Portal Imprensa, Mara Luquet conta que o canal de jornalismo "não é TV, nem rádio, nem impresso. É um bicho totalmente novo e com uma proposta diferente do que já tem no YouTube". É natural que quem desbrave um caminho novo não saiba a rota a seguir e então esse itinerário vai sofrendo alterações, mas é essencial que o destino esteja sempre claro.

Pelo que demonstrou em sua estreia, o MyNews ficou devendo em pluralidade, vivacidade e interatividade, mas a ideia central esbanja inovação e coragem, aparenta liberdade de expressão e é capaz de encher qualquer entusiasta do bom jornalismo de perspectivas.

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josuá barroso é jornalista formado, possui anos de prática em produzir programas de telejornalismo (nem sempre tão convencionais). É certamente menos experiente do que qualquer um do competente elenco estrelado do MyNews e escreveu essa crítica na infindável condição de consumidor de conteúdo.

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