As luzes se acendem. À primeira vista, móveis históricos saltam aos olhos pelo brilho que mantêm. Eles estão talhados em "madeira de lei" e essa expressão nunca foi tão literal. Olhando ao redor, o ambiente cerimonioso que remete à metade do século passado abriga também metros e metros de cabos de energia bem camuflados que interligam câmeras igualmente veladas. Elas são capazes de gerar imagens e som dali em tempo real a milhões de televisores em todo o Brasil, além de poderem chegar a qualquer dispositivo com acesso à internet em todo o mundo. Quem sintoniza, admira o painel de mármore que serve de pano de fundo às poltronas em couro de onde também se observa o Brasão de Armas Nacionais pouco abaixo de um crucifixo cristão confeccionado em pau-brasil. Se fosse possível, lá do alto a estátua contemplaria os carpetes em tons de bege cuja cor exata só se atinge sob encomenda. Os aveludados são do tipo Tuscany e possuem proteção antiácaro, antifungos e antibactéria. As alfombras foram trocadas ano passado ao custo de 578 mil reais. O chão acarpetado compõe um plenário de juízes que se traveste de cenário de TV com o argumento de garantir que nada será varrido para debaixo do tapete.
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Plenário do STF virou cenário de TV com carpete de 578 mil reais e anseio de garantir que nada será varrido para debaixo do tapete (foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF) |
Desde agosto de 2002, a TV Justiça transmite todas as sessões do Supremo Tribunal Federal. A lei que permitiu a inovação elevou sobremaneira a capacidade de espectadores que antes acabava se limitando às 170 cadeiras tons de areia distribuídas no anfiteatro. A emissora de TV pública foi fundada com base em um anseio pela transparência. Entretanto, célebres momentos recentes em que os onze homens e mulheres da capa-preta se encontraram para julgar réus privilegiados por foro ou que chegaram até lá pela habilidade de defesas estreladas, podem demonstrar radicalmente o efeito prático contrário desse nobre propósito. A transparência exacerbada coloca em risco o equilíbrio e - quiçá - influencia as decisões do Judiciário brasileiro.
Ao final desse artigo você vai entender como as sessões ao vivo do Supremo, as declarações de magistrados para a imprensa e até mesmo uma etapa do processo de escolha dos ministros vão colocar a decisão da prisão ou não de Lula nas mãos de uma só pessoa.
Quando se direciona holofotes a juízes, abre-se um precedente ao ego. É despertada a vaidade dos juízes demasiadamente humanos. O início das transmissões não se deu sem que houvesse o contraditório. Um dos integrantes da Corte na época, Eros Grau observou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. "Essa prática de televisionar as sessões é injustificável. Tem que se dar publicidade à decisão, não ao debate que pode ser envenenado de quando em quando. Acaba se transformando numa sessão de exibicionismo".
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A proposta de levar aos brasileiros as discussões dos mais importantes juízes ao vivo, sem cortes e sem censura não cria exatamente um controle externo à Corte. Na prática, para a maioria dos cidadãos os debates ainda são um amontoado de códigos indecifráveis, formais e enfadonhos. Os espectadores que se sentam nas poltronas do plenário em Brasília se cochilarem são discretamente alertados por seguranças que são treinados a orientar que a pessoa vá lavar o rosto. Aos telespectadores, o mesmo despertador não é possível. Se as transmissões não conseguiram ainda garantir transparência à maioria da população, conseguiram por outro lado alongar os votos dos ministros. Em sua tese de doutorado, Felipe de Mendonça Lopes, da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas levantou que "Os acórdãos ficaram com 26 páginas a mais, em média" desde 2002. A tese elaborada em 2017 defende que esse tempo a mais "prejudica a eficiência do Tribunal” e ainda traz uma argumentação. “O motivo do aumento não é a dificuldade técnico-jurídica da questão, mas tão somente aparecer mais tempo na TV”.
A título de comparação, a Suprema Corte dos Estados Unidos preserva à toda prova seus nove ministros. As sessões são absolutamente secretas sendo vedadas também fotografias, incluindo nesta regra até mesmo as sessões solenes de posse dos magistrados. Não se trata de uma decisão que encontre concordância entre os cidadãos americanos. Pesquisas realizadas nos anos de 2010 e 2011 escancaram o desejo da ampla maioria dos ouvidos (61% e 72%) de ter acesso aos debates que ocorrem à guisa de conclave no Judiciário americano.
É certo que sessões secretas poupariam a difusão de cenas às vezes lamentáveis como as que se repetiram entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski durante os intermináveis embates no julgamento do chamado Mensalão do PT ou mesmo a recente troca de farpas entre os ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso quando o segundo retrucou uma provocação classificando a prática do colega de toga. "É bílis, ódio, mau sentimento, é uma coisa horrível”. Se fosse uma sessão secreta, talvez a desinteligência nem teria ocorrido. As luzes de TV que, vez por outra, parecem fritar o raciocínio dos juízes também os colocam no patamar dos políticos que - por estarem sempre à mercê do voto - precisam lançar mão de artifícios que convoquem atenção para si, inclusive se envolvendo em polêmicas. Ao invés do voto, os magistrados parecem buscar o respeito e reconhecimento vindo dos cidadãos em nome da vaidade demasiadamente humana já mencionada.
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A corrida pela transparência poderia estar em contradição com o que é proibido aos magistrados segundo sua própria lei orgânica.
Art. 36 - É vedado ao magistrado:
III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
É preciso estar atento para não misturar "alhos com bugalhos". Ao buscar transparência, o Judiciário quer garantir que todo cidadão interessado possa ter acesso aos debates e às decisões da Corte. O que a lei proíbe é que o juiz de qualquer instância apresente opiniões, dê declarações ou faça comentários que de alguma maneira acabem por adiantar uma futura posição quando determinado magistrado estiver a ponto de votar sobre qualquer assunto. Garantir que o ministro não dê declarações "fora dos autos do processo" seria uma maneira de preservar o Judiciário de precipitações.
Apesar disso, possivelmente impulsionados e motivados pela vitrine estabelecida pelas transmissões do plenário, alguns ministros passaram a ignorar ou pelo menos menosprezar o que a lei os veda. É muito sensível interpretar se numa eventual entrevista ou publicação em rede social, um ministro está dando opinião ou apenas exercendo a liberdade de expressão, direito garantido a todos pela Constituição. Em "Comentários ao Código de Ética da Magistratura Nacional", Lourival Serejo defende que "o magistrado deve agir com cautela, sem necessidade de esconder-se ou negar-se a receber qualquer agente de comunicação. O tratamento deve ser de cortesia e disponibilidade para dar os esclarecimentos pedidos, tendo o cuidado de não adentrar no mérito da causa".
Tudo risonho, límpido e transparente até que um problema se apresenta
Exemplo prático do risco representado por declarações antecipadas sobre decisões futuras é a questão da possibilidade ou não da execução da pena após a condenação em segunda instância. Nesse caso é possível observar também o possível "envenenamento" do Judiciário como previa o então ministro Eros Grau na inauguração da TV Justiça.
Estamos falando da prisão ou não do ex-presidente Lula. É a isso que as atenções estão voltadas agora e essa é, finalmente, a razão de ser desse artigo. A defesa do condenado quer garantir que ele fique livre até que se vejam esgotados todos os recursos de todas as instâncias da justiça, o chamado "trânsito em julgado". O próprio STF já se debruçou sobre o tema diversas vezes.
Primeiro em 2009, quando os ministros tiveram que se manifestar nos autos sobre o assunto e decidiram exigir o esgotamento de todos os recursos para iniciar o cumprimento da pena. Até então, cabia ao juiz de cada caso decidir o início da prisão. A primeira decisão do colegiado pode ser considerada impopular já que naturalmente a sociedade mantém sede de justiça e sempre quer ver seus condenados pagando pelo crime que cometeram. Nessa ocasião, ainda não havia transmissão das sessões. Não existia a TV Justiça.
Quando o Supremo voltou a analisar a mesma questão, em fevereiro e outubro de 2016, os brasileiros já estavam acostumados com a existência das sessões ao vivo no plenário, principalmente depois dos épicos debates em torno do processo do Mensalão. Dessa vez o entendimento foi o oposto em relação a 2009. Uma decisão mais alinhada com os anseios da sociedade, embora a Corte tenha sempre que atuar com independência completa incluindo até mesmo os tais anseios da sociedade. De qualquer maneira, a olhos vistos, as duas decisões tomadas em sessões de 2016 transmitidas pela TV, se alinharam a esses anseios.
Onde mora o perigo
Com tantas horas de plenário e discussões ao vivo sobre esse tema, o réu, advogados, jornalistas, especialistas, cidadãos e os próprios ministros entre si conseguem prever os argumentos que virão em uma nova análise direta ou indireta do assunto. Só com o que é dito nos autos, conforme prevê a lei orgânica da magistratura, já é possível contabilizar boa parte dos votos favoráveis e contrários ao habeas corpus solicitado pela defesa de Lula.
Ainda com base no que é declarado nos autos - ou seja - em plenário ou que é redigido no voto de cada ministro, fica difícil prever a posição futura de quem orbitou por posições conflitantes. É o caso dos atuais ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. O primeiro, mudou de ideia num intervalo de oito meses em 2016 - da prisão após a segunda instância para a prisão somente após a terceira instância. O segundo, alterou o próprio entendimento de 2009. Sete anos depois, as câmeras da TV Justiça puderam transmitir quando Mendes se declarou favorável à possibilidade da prisão bastando a segunda instância.
Se a mesma situação ocorre nos Estados Unidos, não se teria tantas informações detalhadas das idas, nem das vindas e tampouco das "idas e vindas" dos ministros. A população conheceria apenas o resultado. Quando eventualmente a questão retornasse, dificilmente poderia se prever um placar ainda mais com uma nova composição do tribunal, como é o caso da nossa Suprema Corte com a chegada do ministro Alexandre de Moraes ano passado.
A falta de previsibilidade de decisões é um importante trunfo da justiça. A venda nos olhos da estátua não é sem razão. Além disso, uma instância superior possui um colegiado de juízes exatamente para que nunca fique nas mãos de um só magistrado uma decisão de tamanha importância, como esta que se coloca agora quando um ex-presidente da República pode ser preso.
A junção das informações que se tem através do que se vê desde 2016 nas sessões ao vivo do Supremo, demonstra uma previsibilidade no placar. Mais que isso, uma previsibilidade de empate. Em termos práticos, essa perspectiva empodera aqueles que não se sabe como vão votar. Se houvesse a intenção de alguma parte em beneficiar o juiz em troca de um entendimento favorável, por exemplo, não seria necessário ofertar a onze. As sessões transmitidas, desse modo, acabam por possibilitar a neutralização do próprio conceito de "decisão colegiada".
Tudo isso numa análise restrita ao que se é falado nos autos e que, em vista disso, não fere a lei da magistratura brasileira. Basta que se acompanhe as sessões ao vivo do STF.
Entretanto, quando passamos a observar as declarações dos ministros fora dos autos - logo, contrariando a lei - a previsibilidade pode ser ainda maior e o perigo aumenta exponencialmente.
Veja então o que diz o ministro Gilmar Mendes nos autos.
"Uma coisa é termos alguém como investigado. Outra coisa é termos alguém como denunciado. Outra coisa é ter alguém com condenação. E agora com condenação em segundo grau. O sistema estabelece uma progressiva derruição da ideia de presunção de inocência". (Gilmar Mendes em outubro/2016 defendendo a possibilidade da prisão em segunda instância)
Agora o mesmo ministro em entrevista a jornalistas, direto de Lisboa, na véspera do julgamento do habeas corpus para Lula que nada mais é que uma reedição das sessões do Supremo de 2009 e 2016.
“Ter um ex-presidente da República, um 'asset' [ativo] como o Lula, condenado, é muito negativo para o Brasil (...) Uma corte suprema não deve estar indiferente ao que ocorre no mundo externo. Não pode ter um tipo de autismo institucional, isto é evidente. Mas se ela se curva a isso que está no mundo externo, ela deixa de ser corte suprema. (...) Se alguém torce para prisão de A, precisa lembrar que depois vêm B e C. (...) Era um termo de possibilidade [prisão após a segunda instância] e virou uma ordem de prisão. Isso é uma grande confusão."
Não se sabe o que levou o ministro à aparente mudança de posição. Mas é impossível não ter certeza de que ele tem a ciência de como mexe diretamente no placar previsto para o julgamento. Qualquer cidadão sabe disso, repito, pelas transmissões das sessões. Mas ao dar entrevista na véspera do julgamento, o ministro Gilmar Mendes adianta um eventual entendimento e reduz mais ainda o poder do colegiado que depende da imprevisibilidade.
Outro fator que poderia colaborar para a imprevisibilidade do julgamento prestigiando o colegiado também foi eliminado. Antes de se tornar ministro do Supremo, durante sabatina no Senado, Alexandre de Moraes foi questionado sobre a prisão após a segunda instância. Ele ainda não havia sido nomeado, a sabatina inclusive faz parte do "processo seletivo", e nem sequer era juiz. Por isso, não tinha nenhum impedimento de opinar. E opinou favoravelmente à prisão bastando a condenação em segunda instância.
Com tudo isso posto, sessões ao vivo, declarações fora dos autos e sabatina no Senado, qualquer um consegue prever um empate de 5 a 5. O que de certa maneira desprestigia um colegiado e leva diretamente a decisão final para uma só ministra. Exatamente a juíza que tem posição mais rigorosa em relação a não dar declarações, não fazer comentários e nem postagens em redes sociais ou dar entrevistas que adiantem seu posicionamento. Assim como os seus colegas, Rosa Weber também tem posições conhecidas graças à transparência no Judiciário. E nesse caso da prisão em segunda instância, ela sempre foi contrária quando o assunto foi debatido em plenário. Em oportunidades em que precisou decidir sozinha, seguiu a maioria e negou habeas corpus a condenados em segunda instância (57 de 58 pedidos de 2016 até aqui). Mas agora a questão volta a plenário e, na realidade dos fatos, Weber vai decidir sozinha.
"A primeira virtude de um juiz tem de ser a independência. E a independência não é coisa abstrata. É independência do poder econômico, do poder político, do poder da imprensa e da opinião pública, independência dos próprios preconceitos".
Ex-ministra do STF Ellen Gracie, agosto de 2011
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